O Vasco, o remo, o mar

05/03/2012 10:34

 

História

O Vasco, o remo e o mar

Por Ricardo Pinto dos Santos
Historiador, Coordenador Geral do Centro de Memória Vasco da Gama

A cidade do Rio de Janeiro tem uma forte identificação com o mar. Essa marca, quase mística da cidade, carrega toda uma atmosfera que serviu para a construção da imagem do carioca. Nos dias de hoje, é fácil encontrar postais em que homens e mulheres exibem seus corpos enfeitando as nossas praias. Da mesma forma, as mais diversas modalidades esportivas são facilmente observadas nas faixas de areia do nosso litoral.

Visto a partir destas ideias iniciais, conclui-se que a história do remo está inserida na predestinação carioca ao mar e ao esporte. No entanto, quem investir neste discurso comete um grave erro histórico. Na verdade, o remo é um capítulo especial no cenário esportivo nacional. Assim sendo, deve-se voltar no tempo para melhor entender esta história.

O final do século XIX foi um período de grandes transformações para o país. A Proclamação da República (15 de novembro de 1989), a Abolição da Escravatura (13 de maio de 1888) e a modernização das cidades são exemplos emblemáticos daquele momento histórico. Foi naquele contexto de grandes mudanças que o mar assumiu um novo papel na configuração da cidade.


Campeonato Brasileiro de1951

Por toda a primeira metade daquele século, o mar servia apenas como uma referência distante, notadamente pelas péssimas condições das águas, pelo mau cheiro conseqüente e, sobretudo, pela péssima saneabilidade da cidade. Não havia lazer nos mares do Rio. O máximo de proveito que a população fazia desses espaços resumia-se aos banhos de mar, ainda bastante tímidos naquele período.

Foi na segunda metade do século XIX, especialmente nos seus últimos 25 anos, que a ideia de modernização da cidade provocou nos mares do Rio uma mudança significativa. Médicos, engenheiros e sanitaristas começavam a assumir cargos de importância na administração pública e focavam suas ações em saneamento, higiene e limpeza. Com isso, provocaram o surgimento de uma nova metrópole.

A partir de uma nova ordem urbana, as águas do Rio tornaram-se mais atrativas para os cariocas. Os banhos de mar, para além das suas propriedades medicinais, assumiam também importante papel na construção da nova capital.
Muito distante das vestimentas atuais, as roupas utilizadas nos banhos atendiam às preocupações com o pudor e os bons costumes, embora fossem revolucionárias para a época.

Assim, diante das mudanças ocorridas, o litoral do Rio passou a servir como ponto de encontro para o lazer dos seus cidadãos. Piqueniques, passeios de barcos e, especialmente, as corridas de canoas geraram uma nova dinâmica no litoral. Essas corridas, reconhecidas como os primórdios do remo, logo transformaram-se em eventos sociais. Daí para a organização das regatas foi apenas uma questão de tempo.

Em 1851, na cidade de Niterói, foi composto o primeiro grupo organizado de remadores. Em 1862, no Rio de Janeiro, surgiram os grupos Regata e British Rowing Club, este formado apenas por ingleses.  O remo acompanhava a transformação que ocorria na cidade.

Fotografia das duas guarnições vascaínas, vencedoras da prova Riachuelo de 1950

 

Até aquele momento, momento de transição entre o Império e a República, não havia a compreensão de esporte como se tem hoje. A modalidade mais desenvolvida da época era o turfe, onde o atleta era o cavalo e o jóquei um coadjuvante. No remo, essa configuração era diferente. O corpo assumia um novo padrão estético e, na esteira dos ideais republicanos, uma nova era começava.

Corpos fortes, audazes e aventureiros invadiam os mares da capital brasileira. Bem distante do perfil dos jóqueis, franzinos, pequenos e fracos, os remadores, com seus corpos expostos, passavam a ditar moda, comportamento e, sobretudo, se alinhavam à nova proposta republicana: a construção de uma cidade altiva e moderna.

As instituições esportivas se estruturavam, criavam seus estatutos. A prática do remo, acompanhando o projeto de modernização do país, ajustou-se a valores próprios do contato com o mar. Desse modo, pescadores e catraeiros, pioneiros na arte da navegação, logo foram substituídos pelos remadores dos clubes. Naquele momento, os jovens fortes e audazes da elite carioca assumiam o lugar de atleta, antes ocupado pelos trabalhadores do mar.

Como é por demais sabido, dentro do conceito elitista, o distanciamento das camadas populares é imperioso. Na organização das competições do remo carioca não foi diferente. Várias foram as artimanhas criadas para dificultar que o segmento popular da sociedade ocupasse o mesmo espaço dos mais abastados. A construção de arquibancadas é um bom exemplo deste propósito, porquanto definiam os melhores lugares para quem tinha mais posses. O poderio econômico se fazia valer.

Entretanto, apesar da iniciativa, os populares continuaram participando do espetáculo esportivo mesmo tendo a sua condição limitada a espectador e, durante certo tempo, a apostadores. As apostas, vale lembrar, eram uma das principais atrações dos esportes, mesmo sendo proibida pelo governo, que via na proibição uma forma de moralizar o campo esportivo.

Regata pré-campeonato, Raphael Verri e o-sócio fundador do Vasco, José Alexandre Avelar Rodrigues, cumprimentando remador vencedor em 1951


Tal fato somente sofreria mudanças com a chegada e a popularização do futebol, único esporte que iria permitir aos populares uma reestruturação completa do modus operandi da atividade esportiva. Todavia, esta é uma outra história. Continuemos no remo.

Clubes surgiam por toda parte. Club de Natação e Regatas (1867), Club Guanabarense (1874), Club de Regatas Paquetaense (1884), Clube de Regatas Botafogo (1894), Club de Regatas Internacional, Grupo de Regatas Gragoatá, Clube de Regatas Icaraí e Club de Regatas do Flamengo (1895), Club de Regatas São Christóvão (1898), são exemplos de agremiações fundadas e destinadas à prática do remo, estimuladas pela novidade das competições náuticas. O remo tornou-se o esporte da moda, competindo diretamente com o turfe.

Fundado no bairro da Saúde, local onde moravam muitos comerciantes e comerciários, o Club de Regatas Vasco da Gama surge no contexto de transformação da cidade. Com a proximidade das comemorações do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para as Índias, o nome do almirante responsável pelo grande feito teve especial acolhida para batizar o clube que nascia.

No dia 21 de agosto de 1898, atendendo ao chamamento que permeava a classe caixeiral, hoje dita comerciária, 62 idealistas estiveram presentes à primeira assembléia e elegeram Francisco Gonçalves do Couto Júnior presidente do Clube, estabelecendo como primeira sede um sobrado da rua da Saúde, localizado em frente ao Largo da Imperatriz. Não duraria muito tempo ali, até porque aquela morada inicial tinha caráter provisório. Pouco tempo depois, ocorria a mudança para o barracão-sede da Ilha das Moças, também na Saúde.

Cabe aqui uma menção especial aos 04 jovens que foram os grandes agentes da mobilização que culminou com a fundação desse gigante do desporto nacional. À Henrique Ferreira Monteiro, Luís Antônio Rodrigues, José Alexandre d’Avelar Rodrigues e Manuel Teixeira de Souza Júnior, a nossa eterna gratidão. À eles, toda honra e toda glória.

Remadores do Vasco na sede náutica da Lagoa em 1954

 

Composto por um significativo contingente de elementos de poucos recursos em seu corpo associativo, enfrentou o Vasco sérias dificuldades em mobiliar-se adequadamente de modo a participar das competições náuticas. Não à toa resolveram não competir no ano da sua fundação. Diante desse quadro, o primeiro desafio dos vascaínos foi organizar-se como instituição clubística e, principalmente, focar na aquisição de embarcações para começar a construir a sua história no esporte.

Diferentemente dos outros clubes, o Vasco iniciou sua trajetória com questões bem inovadoras para a época. Para além da dificuldade financeira, o clube revelava, logo nos primeiros anos, preocupação com a formação de atletas remadores, tornando-se um das primeiras instituições esportivas a criar uma escolinha de remo na cidade.

Naquele momento, as reformas por toda a cidade estavam a todo o vapor. Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito pelo presidente Rodrigues Alves para o período 1902/1906, foi o responsável por grande parte das transformações implementadas no então Distrito Federal. Inspirado pelo que presenciou durante a Reforma Haussmann, nos anos em que morou em Paris, promoveu uma verdadeira revolução urbanística na Capital Federal, tendo como companheiros de primeira linha Lauro Müller, Paulo de Frontin e Francisco Bicalho.

Empolgado com a crescente popularidade do remo, o prefeito Pereira Passos ordenou a construção, na Enseada de Botafogo, de um pavilhão para assistência das regatas, lugar adequado para receber autoridades e a elite do Rio de Janeiro que, já naquele tempo, disputavam entre si espaços para assistir as disputas do novo esporte. O remo destacava-se no cenário esportivo carioca.

Com grande esforço dos associados, o Vasco começava a montar sua flotilha. Tendo que atender as exigências técnicas da União de Regatas Fluminense, entidade  responsável pela organização dos esportes náuticos, foram adquiridas, inicialmente, as embarcações  Zoca  (canoa/4 remos), Vaidosa (baleeira/4 remos) e Volúvel (baleeira/6 remos).

A primeira grande vitória aconteceu em 04 de julho de 1899 com a embarcação Volúvel. Outras tantas seguiram-se ao longo de todos estes anos.

O bicampeonato de 1905/06 e o tricampeonato de 1912/13/14 gravaram o nome do Vasco na galeria dos grandes clubes brasileiros. Pelo que representaram para o Clube na fase de consolidação de sua grandeza, os barcos Procelaria (1905/06), Meteoro (1912), e Pereira Passos (1913/14), merecem destaque no panteão das grandes embarcações vascaínas.

Joaquim Carneiro Dias, um dos maiores remadores do clube. Foi Grande Benemérito e participou administrativamente do clube


Contudo, nenhum outro barco representou tão bem a glória vascaína nas águas da Baía de Guanabara quanto o Íbis. Nenhum outro barco foi tão vitorioso quanto o Íbis, o Barco Invencível, um yole a dois remos, construído nos estaleiros da Galinari & Co, de Livorno, Itália. Permaneceu invicto de 07 de julho de 1912 a 18 de junho de 1918! Joaquim Carneiro Dias e Claudionor Provenzano formaram a dupla mais famosa do Íbis.

Dentre tantas conquistas do remo vascaíno, devem ser ressaltados os 47 títulos cariocas, 11 campeonatos brasileiros, sendo 09 masculinos e 02 femininos, e algumas vitórias internacionais, das quais 05 campeonatos sulamericanos.  O Vasco é uma referência  no esporte.

A pujança do remo vascaíno impactou positivamente nos primeiros anos do futebol cruzmaltino. Graças à posição de destaque que o Clube já ocupava no cenário desportivo carioca e, consequentemente, nacional, pôde o Vasco colocar-se firmemente contra a discriminação que lhe queriam impor como desdobramento da avassaladora conquista futebolística no Campeonato Carioca de 1923. Por já ser um grande entre os grandes, teve lastro para enfrentar a elite que dominava o futebol do Rio, posicionando-se contra as determinações de afastar atletas oriundos de um extrato social menos favorecido. Dos que se opunham aos ditames de forte conotação racista, apenas o Vasco já era reconhecido como um grande vencedor, como campeão.

Na década de 30, precisamente em 1933, as provas de remo passaram a ser disputadas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Com isso, outra demanda surgiu para o Vasco, notadamente decorrente da distância entre o barracão, na rua Santa Luzia, e o novo espaço das competições, além da dificuldade que era transportar todo o equipamento. A solução para o problema veio somente em 18 de agosto de 1950, quando foi inaugurada a bela Sede Náutica da Lagoa.  

Em 1945, as conquistas dos campeonatos cariocas nos dois esportes mais populares do Clube, o remo e o futebol, fizeram com que a Diretoria eternizasse aquele ano no pavilhão cruzmaltino. Ao sagrar-se Campeão Invicto de Terra e Mar, uma estrela dourada foi adicionada à bandeira vascaína. Eram os tempos do Expresso da Vitória e dos 16 títulos consecutivos do remo.

O remo foi e ainda é a alma do Vasco. Sua tradição de lutas e glórias nunca será ocupada por nenhum outro esporte. Afinal, toda a grandeza do Vasco foi forjada nas primeiras conquistas nas regatas. É impossível pensar o Vasco sem o remo, da mesma forma que é impossível pensar o remo sem o Vasco.

É nessa simbiose, íntima e recíproca, entre remadores e clube, que as primeiras marcas do Club de Regatas Vasco da Gama foram rubricadas na história do esporte nacional.

Avante, navegadores!
Avante, Vasco!
        
  Títulos

 

Confira abaixo todos os títulos cariocas do Club de Regatas Vasco da Gama desde sua fundação:

 

 ANO  -  CAMPEÃO

1905, 1906, 1912, 1913, 1914, 1919, 1921, 1924, 1927, 1928, 1929, 1930, 1931, 1932, 1934, 1935, 1936, 1937, 1938, 1939, 1944 , 1945, 1946, 1947, 1948, 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1954, 1955, 1956, 1957, 1958, 1959, 1961, 1970, 1982, 1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003 (sub-judice), 2005, 2008.

 

 

Fonte: Site Oficial do Vasco