A história do Vasco

2010-04-21 13:35

 

INTRODUÇÃO

 

Neste artigo, não nos preocuparemos em relatar, nos mínimos detalhes, a história do Club de Regatas Vasco da Gama desde a sua fundação até os dias atuais, mas sim, destacar alguns dos fatos mais importantes que marcaram os mais de cem anos de vida da instituição e que trouxeram desdobramentos na organização espacial do entorno do seu estádio. Para tal, mostraremos como o clube modificou a sua identidade esportiva, num primeiro momento, ligada ao remo e, atualmente, vinculada ao futebol; como moldou uma identidade própria a partir de uma identidade portuguesa original; e a sua importância na história recente do Brasil, com destaque para a construção do Estádio de São Januário e a Era Vargas.

Em relação ao papel social desempenhado pela agremiação, vale ressaltar a sua briga em favor da aceitação de atletas não brancos – mesmo que por interesse –, além daqueles pertencentes às camadas sociais menos favorecidas. Entretanto, apesar de reconhecermos o mérito do Vasco da Gama nessa luta, torna-se necessário um reparo sobre o papel pioneiro equivocadamente atribuído ao clube em relação à aceitação desses futebolistas, honra que cabe ao Bangu Atlético Clube, pioneiro na introdução do negro no futebol brasileiro, além da figura do “operário-jogador”, que serviu como ponte entre o atleta amador e o profissional.

 

 

OS PRIMEIROS PASSOS: IDENTIDADE PORTUGUESA E CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA

 

No dia 21 de abril de 1898, um grupo de 62 cidadãos, formado por portugueses e luso-descendentes, assinou a ata de fundação do Club de Regatas Vasco da Gama. A princípio, parecia apenas mais um dentre tantos clubes dedicados à prática do remo, esporte mais popular daquela época, a surgir no Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o século XX. Porém, nem o mais otimista daqueles homens reunidos no Clube Dramáticos Filhos de Talma, situado à Rua da Saúde, 293 (www.crvascodagama.com) poderia imaginar que a instituição por eles criada como uma forma de lazer para as horas vagas, ultrapassasse a marca dos cem anos, vindo a se tornar internacionalmente conhecida graças a uma modalidade esportiva da qual provavelmente nenhum deles ouvira falar anteriormente: o futebol.

De início, muitos foram os símbolos escolhidos para representar a recém-criada agremiação. Todos eles com o intuito de reforçar ainda mais o seu vínculo com Portugal e com o remo, suas principais referências identitárias.

O nome Vasco da Gama foi escolhido como uma forma de homenagear o quarto centenário da viagem de descoberta do caminho marítimo às Índias empreendida pelo famoso navegador lusitano, comemorado em 1898, ano de fundação do clube. Essa designação, sem dúvida, parecia ser a mais apropriada para simbolizar uma instituição ligada à colônia portuguesa, cujo interesse esportivo inicial ligava-se às regatas disputadas nas outrora limpíssimas águas da Enseada de Botafogo, na Baía de Guanabara.

Não somente a denominação da agremiação unia-a a colônia portuguesa. A adoção de outros símbolos, alguns deles de modo equivocado, reforçou ainda mais essa identidade portuguesa herdada pelo clube desde a época de sua fundação.

Talvez o símbolo vascaíno mais conhecido por parte do grande público seja a “Cruz de Malta”. Tal designação, na verdade, é fruto de um erro histórico. O verdadeiro nome da cruz presente no escudo, bandeira e uniforme vascaínos é Cruz Patée, ou Pátea. Entretanto, os fundadores do clube cometeram um segundo equívoco ao escolhê-la para simbolizar a façanha do navegador Vasco da Gama, pois, desde o século XIV, por ordem do rei D. Dinis, a cruz que as naus portuguesas portavam era a Cruz de Cristo.

 

 

NAVEGANDO EM MEIO ÀS TORMENTAS

 

Em relação à sua origem, não foi apenas o fato de ter sido desde o início um clube ligado à colônia portuguesa que distinguiu o Vasco da Gama dos seus atuais rivais. De acordo com Mattos (1997), o Vasco da Gama, diferentemente de clubes como Flamengo, Fluminense e Botafogo, não contou com a participação de membros pertencentes à elite residente na zona sul carioca, sendo composto principalmente por “comerciantes ou  assalariados portugueses que viviam na zona norte ou nos subúrbios” (p.83).

Entretanto, não tardou para que surgissem os primeiros obstáculos a serem enfrentados pela recém-criada agremiação. Em pouco tempo, disputas internas levaram o clube a sofrer uma cisão em 1899, quando houve a renúncia do primeiro presidente do clube, Francisco Gonçalves do Couto Júnior, que, descontente com alguns entraves na mudança do barracão onde eram guardadas as embarcações, se no Passeio Público ou na Praia de Botafogo, fundou o Clube de Regatas Guanabara, levando consigo boa parte dos associados do Vasco da Gama.

O forte vínculo inicial com Portugal pode ser percebido ao analisarmos o caso do naufrágio, em 1902, da baleeira de 12 remos Vascaína, que resultou na morte de três remadores. Os outros nove, foram salvos por dois pescadores e um menino que receberam o título de sócios do clube, além de uma condecoração por bravura, de um representante do rei de Portugal, D. Carlos (PLACAR, s/d. p.p.25-27).

Em 1904, o clube viria a dar uma amostra do seu caráter social pioneiro ao eleger como presidente Candido José de Araújo, o primeiro negro a exercer tal cargo em uma agremiação esportiva carioca (MALHANO, 2002, p.60).

A conquista do primeiro campeonato carioca de remo viria somente em 1905. Nessa mesma época, começava a ganhar corpo na capital federal, ainda com ares de novidade, um esporte trazido da Europa, que, já há algum tempo, fazia sucesso em São Paulo. Não tardou para que o foot-ball tomasse de assalto o Rio de Janeiro, e a colônia portuguesa não poderia ficar de fora deste baile.

 

 

A VEZ DO FUTEBOL: A NOVA IDENTIDADE

 

Como mostramos anteriormente, a primeira identidade esportiva do Vasco da Gama não se forjou à base do futebol e sim do remo, modalidade que, naquela época, alcançara uma organização invejável, sendo inclusive, desde 1897, possuidora de uma federação própria]

Entretanto, já na década de 1910, as regatas passaram a dividir a atenção do público com o futebol, esporte oficialmente trazido ao Brasil em 1894, pelas mãos de um paulistano, filho de britânicos, chamado Charles Miller, considerado por muitos como o introdutor dessa modalidade no Brasi O foot-ball, como era chamado na época, não tardou a estender os seus tentáculos em direção à então capital federal e o fez pela figura de Oscar Cox, que, em 1897, recém-chegado da Suíça, onde estudara durante alguns anos, não se esqueceu de trazer na bagagem de volta ao nosso país, uma bola para a prática da nova modalidade desportiva.

O gosto pelo novo esporte, a princípio, ficou restrito aos círculos mais altos da nossa sociedade, ou então, aos clubes freqüentados pela colônia britânica, como era o caso do Paysandu Cricket Club (Rio de Janeiro) e do Rio Cricket and Athletic Association (Niterói). De acordo com Pereira (2000), naquele tempo “o futebol aparecia como uma espécie de celebração da identidade bretã” (p.27).

Não tardou para que a paixão pelo futebol deixasse os salões da alta sociedade e passasse a chamar a atenção das camadas menos favorecidas da nossa população, conquistando, rapidamente, uma legião de novos e entusiasmados adeptos, que passaram a disputar partidas em campos improvisados em praças, parques e terrenos baldios espalhados pela cidade.

Podemos afirmar que os agentes responsáveis pela disseminação e popularização do futebol sintetizam bem a famosa capacidade de improvisação do povo brasileiro. Nas tradicionais “peladas”, a bola pode ser substituída por diversos outros objetos (meias, laranjas, papel enrolado com fita adesiva etc.), o campo de jogo pode assumir os mais diversos tamanhos e formatos, moldando-se ao terreno no qual a peleja é disputada. A própria superfície tanto pode ser de grama, terra, areia ou cimento. O uso de chuteiras, caneleiras, meiões ou até mesmo do uniforme é perfeitamente dispensável, a largura do gol pode muito bem ser delimitada por árvores, cocos, pedras, pedaços de pau (isso sem contar a altura do travessão que, na maioria das vezes, assume os parâmetros mais subjetivos possíveis, tais como a altura, ou mesmo, até onde chega a ponta dos dedos do goleiro). Isso tudo, aliado à simplicidade das regras do jogo (a lei mais complicada de todas, a do impedimento, é solenemente ignorada nesse tipo de disputa). Dessa forma, o “peladeiro” simbolizaria o povo brasileiro, que precisa usar da sua habilidade para driblar os obstáculos que lhe são impostos pela vida afora, representados, no campo de jogo, pelos zagueiros adversários, árvores, buracos, animais, canos de irrigação e tudo aquilo que lhe aparecer pela frente ou, como bem definiu o pentacampeão do mundo, Ronaldinho Gaúcho, em entrevista publicada no jornal O GLOBO de 16 de fevereiro de 2003, “é numa pelada que a gente se sente livre, que a gente se sente brasileiro”. (p.45)

Voltando à história do Vasco da Gama, no dia 20 de julho de 1913, o Botafogo F.C. convidou um combinado português formado por jogadores do Benfica, Lisboa e Clube de Tiro & Sport (MALHANO, 2002, p.78) que excursionava pelo nosso país. A vitória da equipe visitante por 1 x 0 gerou um clima de euforia no seio da numerosa colônia portuguesa residente no Rio de Janeiro. Não tardou para que surgissem três clubes dedicados exclusivamente à prática futebolística: o Centro Esportivo Português, o Lusitano (que tiveram curta duração) e o Lusitânia F.C.. Exatamente o Lusitânia, recusado em 1915 pela Liga Metropolitana de Sports Athléticos (L.M.S.A), devido ao seu regulamento altamente restritivo (só permitia a presença de portugueses), uniu-se nesse mesmo ano ao Club de Regatas Vasco da Gama, que admitia a presença de brasileiros em seu quadro associativo, dando início ao departamento de futebol do clube. A fusão foi oficializada no dia 26 de novembro de 1915, apesar da oposição do grupo de remadores vascaínos. 

Como toda equipe iniciante, o Vasco teve que começar pela base da pirâmide futebolística. Da Terceira Divisão, para ser mais exato. A estréia, marcada para o dia 3 de maio de 1916 não poderia ter sido mais desastrosa: a derrota por 10 x 1 para o Paladino parecia mostrar que se tratava de apenas mais um clube de duração efêmera, um delírio da colônia lusitana.

A partir de 1917, teve início a grande virada. O nível da equipe começou a melhorar, graças à aceitação de jogadores pobres, notadamente negros e mulatos, escolhidos nas peladas do subúrbio e em clubes pequenos.

É preciso deixar bem claro que a aceitação desses atletas em nada se deveu a uma desinteressada expressão de benevolência por parte dos dirigentes vascaínos, nem, como afirma Rosenfeld (1993), representaria uma “postura tipicamente portuguesa da democracia racial” (p.97). Naquela época, tal prática era bastante difundida nos clubes suburbanos e equipes ligadas ao ambiente fabril. A grande diferença foi que, o Vasco da Gama, por ter o suporte financeiro de parte da colônia portuguesa, tinha condições de recrutar aqueles elementos que mais se destacavam nas peladas e equipes suburbanas, algo totalmente fora de cogitação entre as equipes de maior tradição, compostas por acadêmicos, filhos das “boas famílias” cariocas.

Entretanto, muito antes do Vasco da Gama passar a adotar negros, mestiços e operários em suas fileiras, tal atitude já era prática comum em outras agremiações, como foi o caso do Andaraí, no início da década de 1910, sendo que, o papel de pioneiro em relação à aceitação de membros das camadas menos favorecidas cabe ao Bangu Atlético Clube, que já em 1905 apresentava em seu time principal o operário negro Francisco Carregal (PEREIRA, 2000). Vejamos então qual o verdadeiro papel desempenhado pelo Vasco da Gama em relação ao processo de democratização pelo qual passou o futebol brasileiro a partir da década de 1920.

 

 

O TIME DE 1923: O FUTEBOL ASSUME NOVAS CORES

           

Apesar do exemplo pioneiro dado pelo Bangu ainda na primeira década do século passado, durante longo tempo, a discriminação racial no futebol foi algo institucionalizado, fazendo parte, inclusive, dos regulamentos de instituições esportivas como o Club Sportivo dos Liberais que, em 1906, deixava bem claro em seus estatutos que aceitava um “ilimitado número de sócios de qualquer nacionalidade, exceto pessoas de cor negra (PEREIRA, 2000, p.66).

Exemplo clássico de discriminação racial presente na história do futebol carioca foi o de Carlos Alberto, ex-jogador do Fluminense, time ligado à elite, que, ao ser chamado de “mulato pernóstico” durante partida válida pelo campeonato de 1914, passou a entrar em campo com o rosto coberto de pó-de-arroz para disfarçar o tom escuro de sua pele. No entanto, com o correr do tempo e o calor da disputa, sua maquiagem começou a derreter. Logo, um torcedor mais exaltado chamou-o de “pó-de-arroz”, tornando-o motivo de chacota por parte da assistência. Moral da história: Carlos Alberto foi expulso do Fluminense e, surpreendentemente, o pó-de-arroz foi apropriado pela sua torcida, transformando-se num dos símbolos que compõem a identidade tricolor, pois, como afirma Mattos (1997) “afinal, o pó-de-arroz era um produto fino, usado por reis e nobres de cortes européias. Que mal havia em ser reconhecido como o nobre que era na sociedade carioca?” (p. 52).

 Em 1923, o Vasco da Gama estreava na Primeira Divisão do futebol carioca. A princípio, a chegada de uma equipe recheada de jogadores negros, mulatos e brancos pobres foi minimizada pelos dirigentes das grandes equipes, pois esportistas com essas características não eram figuras raras de se encontrar, principalmente em equipes ligadas ao setor fabril, como Bangu, Vila Isabel e Andaraí. Somente quando a bola começou a rolar é que o Vasco passou verdadeiramente a incomodar à elite esportiva e social da capital federal. O triunfo daquele escrete totalmente fora dos padrões do futebol praticado na época representou um verdadeiro escândalo. Jamais um time com tais características, desafiara a hegemonia dos jovens bem nascidos, bem educados e bem nutridos de Fluminense, Botafogo, América e Flamengo.

A reação contrária ao sucesso do conjunto debutante foi imediata. Logo surgiram acusações de que os seus jogadores não passavam de profissionais disfarçados, o que era proibido na época. Mesmo assim, nada foi comprovado a esse respeito, pois de acordo com o relato de Assaf (1997):

 

Como o profissionalismo ainda estava longe de ser admitido, os jogadores foram todos registrados como funcionários dos estabelecimentos comerciais dos portugueses. Dessa forma burlavam as leis estabelecidas pela Liga e pela comissão de sindicância da entidade. Quando seus principais membros, Reis Carneiro, do Fluminense, Armando de Paula Freiras, do América, e Diocésano Ferreira Gomes, do Flamengo e do Correio da Manhã chegavam às firmas lusitanas para constatar a veracidade das informações do Vasco, os gerentes alegavam que os empregados estavam realizando “serviços externos” (p. 113).

 

Ainda segundo Assaf, os atletas – poderíamos chamá-los assim –  vascaínos, na verdade, estavam treinando a parte física, algo inimaginável naquela época. Era comum vê-los correndo da Rua Morais e Silva – onde ficava o campo do clube – até a Praça Barão de Drummond, em Vila Isabel. Após os treinamentos, os jogadores podiam almoçar de graça no restaurante Filhos do Céu, na Praça da Bandeira. Além disso, o clube ainda lhes fornecia alojamento. Também eram pagos prêmios por vitória, os populares “bichos”. Não é de se estranhar que a maior parte dos triunfos da equipe acontecesse no segundo tempo das partidas, quando o melhor preparo físico dos “camisas pretas” se sobressaía

A verdade é que, muito antes do Vasco da Gama, outras equipes cariocas possuíam esquemas próprios para burlar o regulamento que proibia qualquer tipo de remuneração aos atletas. É o que bem nos mostra Pereira (2000):

 

(...) O processo era simples, tendo sido descrito ainda em seu princípio, em 1915, por um jornal carioca: atraindo para seus quadros um exímio jogador que “por achar-se desempregado, sem recurso e com dificuldade para colocar-se, ele, em troca dos seus esforços, exige que lhe dêem uma módica quantia que especifica”, os clubes lhe arranjavam “um emprego qualquer (...) que só serve para constar, pois o ordenado estipulado sai, mas é dos cofres do club”. (p.310).

 

Caso emblemático, que bem mostra a antipatia que o team cruzmaltino despertava em seus adversários, ocorreu, no dia 8 de julho de 1923, quando o Estádio das Laranjeiras abrigou o match entre as equipes do Vasco da Gama e Flamengo. Boa parte da platéia que lotou as dependências do ground tricolor era composta por torcedores do Fluminense, Botafogo e América, que se uniram para torcer pelo Flamengo, algo difícil de se imaginar nos dias atuais. Com a vitória do time da Rua Paissandú, contra o onze da Morais e Silva por 3 a 2, ao término da partida, as torcidas adversárias promoveram um verdadeiro carnaval fora de época                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          pelas ruas da zona sul da cidade, festejando a vitória dos “filhos de boas famílias” sobre o time dos “caixeiros, negros e analfabetos”. Ainda como parte das comemorações, a estátua de Pedro Álvares Cabral amanheceu com “réstias de cebola e plantaram tamancos de 2m de altura na frente da sede do Vasco, na Rua Santa Luzia, no centro” (PLACAR, s/d, p.28).

De acordo com as nossas observações, ao contrário do que é amplamente divulgado por pesquisadores do futebol, a perseguição sofrida pelo Vasco da Gama a partir de 1923 teve um outro componente além da questão amplamente difundida relacionada à presença de negros e pobres na equipe. Mostraremos desta maneira que a esses dois fatores podemos somar mais um: o sentimento antilusitanista ainda bastante presente no Rio de Janeiro da década de 1920.

 

 

RACISMO E ANTILUSITANISMO

 

Como vimos anteriormente, o Vasco da Gama não foi o primeiro clube a aceitar jogadores negros e pobres em suas fileiras. Tais características daquela equipe são amplamente relacionadas como sendo as únicas responsáveis pela intensa campanha sofrida pelo clube no ano da conquista do seu primeiro título na Primeira Divisão. Entretanto, acontecimentos como o ataque a símbolos lusitanos – a estátua de Pedro Álvares Cabral e os tamancos colocados em frente à sede da instituição – mostram que a intensa comemoração dos torcedores adversários após a derrota vascaína para o Flamengo em 1923 tinha também como alvo a comunidade portuguesa. Tal atitude, longe de representar uma simples e ingênua brincadeira, serviu para mostrar uma outra face do preconceito enfrentado por aquela equipe: o sentimento antilusitanista, muito comum no Rio de Janeiro durante a República Velha (1889-1930). Procuraremos então, comprovar que a campanha empreendida contra o Vasco da Gama possuía um caráter muito mais amplo do que se costuma divulgar, sendo possuidora de um cunho racista, elitista e xenófobo, representado pela perseguição à “maldita” tríade preto – pobre – português.

A passagem do século XIX para o século XX caracterizou-se por um intenso fluxo de imigrantes europeus em direção ao Rio de Janeiro, que em 1890 representavam 30% da população da cidade, dois terços deles, vindos de Portugal (CHALHOUB, 2001, p.p. 43-44). De acordo com o censo de 1920, a população total da capital federal chegava a 1.157.873 habitantes, dos quais 172.338 portugueses, ou seja, 14,88% do total A chegada maciça de lusitanos, principalmente após a libertação dos escravos, acentuou ainda mais a disputa por empregos entre o elemento nacional e o português que “vai ocupando o mercado de trabalho que passa de africano a luso-africano e a totalmente português, nos anos imediatamente posteriores à Abolição” (RIBEIRO, 1990, p.p. 14-15). De acordo com Alves (1999), além de dominarem o comércio retalhista de secos e molhados e de exercerem o ofício de artesão, os portugueses passaram a ocupar serviços anteriormente reservados aos escravos (pedreiros, carpinteiros, cocheiros, estivadores), ou então novas funções, tais como ferroviários e motorneiros de bonde, decorrentes das obras de infra-estrutura pelas quais passaram as maiores cidades brasileiras, além de se empregarem na incipiente indústria da época (p. 60).

Não é de se estranhar que os conflitos entre brasileiros e portugueses se multiplicassem pela então capital federal, tanto que Ribeiro (1990) afirma que “seguindo uma tradição colonial, o grito de ‘mata galegos’ era continuamente reeditado ao alvorecer da vida republicana” (p. 10). Sobre o imigrante português, principalmente o comerciante, pairava entre as classes populares a imagem daquele sujeito bronco, analfabeto e adulterador do peso (ALVES, 1999, p.p. 39-40). Por outro lado, a classe dominante daquela época procurava difundir uma outra imagem do trabalhador português, identificando-o como um sujeito ordeiro, disciplinado, apolítico, ou seja, exatamente o contrário da idéia que se tinha do trabalhador brasileiro, especialmente o ex-escravo, visto como indolente, indisciplinado e pouco afeito ao trabalho. Esse jogo das identidades patrocinado pela elite tinha o intuito de acirrar ainda mais as tensões entre esses grupos. Paralelamente a isso, segundo Alves (1999), havia uma clara divisão da imprensa da época entre publicações de cunho lusófobo e lusófilo. Chalhoub (2001), lembra que para a implantação de uma nova ordem burguesa na jovem república “o conceito de trabalho precisava se despir de seu caráter aviltante e degradador característico de uma sociedade escravista, assumindo uma roupagem nova que lhe desse um valor positivo” (p. 65). Tal caráter positivo seria representado pelo imigrante europeu, o que foi usado também como pretexto para a política branqueamento da população brasileira promovida durante a República Velha.

Ao mesmo tempo, havia um esforço por parte das classes dominantes de se eliminar todo e qualquer resquício que remetesse ao nosso passado colonial-escravista. Para tal, transformações radicais deveriam ser feitas para que o nosso país pudesse ser visto com outros olhos diante do dito “mundo civilizado”A cidade do Rio de Janeiro por ser a capital federal deveria servir como a grande vitrine desse novo Brasil diante do resto do mundo. Para simbolizar a crescente integração da nossa economia ao contexto capitalista internacional daquele tempo, fazia-se necessário que tivéssemos uma capital à altura das grandes cidades européias ou até mesmo das vizinhas Buenos Aires e Montevidéu. Diversos esforços foram feitos para torná-la mais “civilizada”, ou seja, mais européia aos olhos de quem chegava de fora. Intervenções urbanísticas como a Reforma Passos (1902 – 1906) e a demolição do Morro do Castelo durante a Reforma Sampaio (1921 – 1923) foram feitas para eliminar os resquícios da cidade colonial, suja, de ruas estreitas, escuras, basicamente africana e portuguesa, transformando-a numa cidade européia (francesa) de largas avenidas, amplos boulevards e construções monumentais, com a finalidade de adequar a forma urbana às necessidades reais de criação, concentração e adequação do capital daquela época (ABREU, 1997, p. 59). Havia uma verdadeira obsessão em se transformar o Rio de Janeiro numa “Paris nos trópicos”. A própria difusão do futebol representava também o esforço de facilitar a inserção do nosso país no contexto capitalista da época, ensinando aos brasileiros a capacidade de reproduzir num campo de jogo, o espírito solidário, de equipe, muito parecido com o que se deveria ser seguido no ambiente de trabalho, especialmente nas fábricas.

Sendo assim, não havia espaço para as culturas portuguesa e afro-brasileira no novo modelo de país que surgia. A estes dois grupos cabia o papel de fornecedores de mão-de-obra para o comércio e a indústria, disputando um mercado de trabalho saturado, servindo também como exército de reserva. O futebol, pelas mãos do Vasco da Gama, serviu então para – mesmo que devido a um jogo de interesses – uní-los. Ao negro, cabia entrar com o “pé-de-obra” e ao português, o suporte financeiro. O sucesso dessa aliança foi alcançado em grande parte devido à capacidade do negro com a bola nos pés, já que em outras atividades como no comércio ele era claramente preterido pela comunidade lusitana, pois como nos mostra Chalhoub (2001), havia uma nítida preferência do comerciante português em empregar um patrício seu – geralmente um parente vindo de Portugal ainda menino – a ter como funcionário um brasileiro, visto como indolente, malandro e preguiçoso. No caso do futebol, ao português interessava a vitória no campo de jogo; aos jogadores, não apenas os negros, mas todos eles, incluindo mestiços, analfabetos, brancos pobres (inclusive lusitanos), a chance de ascensão social que lhes era negada por uma sociedade de caráter altamente excludente. Desse casamento de interesses preto – pobre – português nasceu a equipe que ajudaria a moldar uma nova face ao futebol brasileiro.

Voltando ao contexto da época, vale lembrar que em 1923 a cidade acabara de assistir ao desmonte de grande parte do Morro do Castelo durante a administração Carlos Sampaio (1920-1922), como parte dos preparativos com vistas à Exposição Internacional de 1922, ponto alto das comemorações do Centenário da Independência, que objetivava mostrar aos olhos do mundo, a partir da capital, uma imagem de Brasil moderno e civilizado. A demolição daquela elevação tida por alguns como “colina sagrada” e por outros como “dente cariado” da cidade representou para os antitradicionalistas a luta “pela invenção de uma outra tradição que evocasse idéias e valores afinados com a modernidade pretendida” (MOTTA, 1992, p. 65). Praticamente ao mesmo tempo em que se punha abaixo um dos maiores símbolos do passado colonial da cidade vista como atrasada, pobre, luso-africana para dar lugar à modernidade, surgia um time de futebol – esporte visto como mais um símbolo da modernidade – exatamente com a imagem que a nossa elite tentara sepultar a partir da ideologia classificada por Barros (2002) como “Abaixo Portugal, viva a França!” (p. 66).

O futebol, como não poderia deixar de ser, refletia a situação daquela época. Basta lembrar que em 1921 o então Presidente da República, Epitácio Pessoa encaminhara ofício a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) solicitando a não convocação de atletas negros com vistas à disputa do Campeonato Sul-Americano de futebol daquele mesmo ano a ser realizado na Argentina (SUSSEKIND, 1996, p.17). Tal proibição partira da presidência sob a alegação de que poderia haver um desgaste da imagem do Brasil, cujos jogadores foram, um ano antes, retratados numa charge publicada por um jornal de Buenos Aires comomacaquitos, devido à presença de atletas negros na nossa Seleção (AGOSTINO, 2002, p.42; JORNAL DA TARDE, 5 de julho de 2002). Tal denominação, de cunho pejorativo, é até hoje utilizada por torcedores argentinos e uruguaios para identificar os brasileiros.